cômodo

entra. não precisa tirar o sapato.

Tudo aqui já foi pisado, espremido, atormentado.

entra. mas cuidado:

cada canto carrega uma ferida em seu lugar.

isso. sinta-se a vontade.

a casa é nua.

finja que estou nem aí,

nem lá

nem louca.

finja que sou a sala do seu estar.

se acomode onde você deseja

esteja.

é aqui onde nosso amor vai morar.

afagia [ou para onde vão os afogados]

Acordo com o silêncio da bússola.
Choro numa manhã fria, de cabeça quente e pensamentos chuvosos. Moletom amassado como o coração daqueles que a cidade já pisou. Sorrio, mas tudo é cronometrado. Segundo-por-segundo disputados, e eu, me entrego à tempestade.
[Quem quer passar além do bojador, tem que passar além da dor?]
Bebo algo quente e preto que escorre pelo ralo seco da garganta. Café e lágrima parecem combinar com o luto de tudo que já morreu afogado por dentro.
[Tudo vale a pena quando a alma não é pequena?]
Fiz rabiscos no mapa, criei vantagens vãs e inexistentes. Para quê? A rota mais parece o redemoinho de um bêbado, uma criança, um sonhador.
[Navegar é preciso, viver não é preciso?]
Penso por onde passei pra chegar até aqui, olho, e já não encontro sequer migalhas para voltar. Comi cada uma para saciar minha fome de caminhos.
[Fizestes uma longa viagem para chegar até o viajante?]
Coloco uma máscara em cima da outra, lavo as mãos como um Pilatos que diz a multidão: “Eu não sou responsável pelo sangue deste homem!”.
Só há sacrifício com um corpo. Ei-lo meu. Erro meu.
[Não tem medo de morrer na praia depois de ter engolido o mar?]
E deito na minha cama de pedra, onde a bússola sem norte ainda não me chama, e canto os ritos dos meus ancestrais.
Apelo para Oxum que afogue meu coração e Ogum que crave sua espada. Eu canto a minha sentença e faço da cruz, meu X do mapa.

defenda-me

deus me defenda da tua bondade maldita
da tua língua carinhosa alisando o que há de espinho em mim.
endereça tua salvação para os céus e deixe-me consumir nos braços da terra.
do pó viemos, para o pó retornaremos, não é disso que se trata?
deixe-me abrigar na semente que me deu luz e sangue e carne e corpo e vida. ser bendito fruto de novo.
deixe-me aqui,  pátrio de quem me pariu e me estendeu as tetas para que eu andasse pelo vale das sombras e não temesse mal algum.
ser estrangeiro de um lugar-promessa ou nativo de um lugar-comum?
deus me defenda de ti e da tua viagem ao eterno
vá tu e a tua bondade e tua promessa em cavalos alados e trombetas.

deixe-me restar junto com o deus que me defende de ti
o deus do meu próprio corpo e juízo
o fim do meu início, o que sabe que nada sabe
o deus que é a ovelha dos lobos desgarrados
o deus que inventei,
o deus que eu sou.

[O que dizem os deuses quando enfim se encontram?]